Outras Palavras: Um corajoso caminho para erradicar a aids

Em testes, eficácia do lenacapavir é 100% na prevenção e 94% no tratamento do HIV. Para programa da ONU, amplo acesso ao novo remédio pode acabar com a aids – mas empresa que o desenvolve quer vendê-lo a preço abusivo. Por que não, então, quebrar sua patente?

27.09.2024

Revelados há dois meses, os notáveis primeiros resultados dos testes com um recente medicamento, o lenacapavir, para a prevenção do HIV sugerem que ele pode marcar um novo momento no enfrentamento à aids. As pesquisas clínicas demonstraram que ele teve uma impressionante eficácia de 100% em prevenir a infecção entre mulheres de diversos países da África, oferecendo “proteção total” com apenas duas injeções anuais, e uma eficácia de 96% em um estudo conduzido em um grupo de países que inclui o Brasil. São números muito superiores aos dos atuais métodos de profilaxia pré-exposição (PrEP, na sigla em inglês). Em combinação com outra droga, a eficácia de seu uso semanal para tratar pacientes que já convivem com o vírus, tornando-o “indetectável”, foi de 94%, também bastante alta.

O preço do lenacapavir para a prevenção ainda não foi divulgado – mas a expectativa é de que seja altíssimo e abusivo, assim como é a cifra de mais de 40 mil dólares anuais por pessoa imposta pela Gilead, grande farmacêutica estadunidense que o desenvolveu, para seu uso com fins de tratamento da aids nos Estados Unidos. Apesar disso, as milhões de pessoas que convivem com o HIV em todo o mundo, além das que estão vulneráveis à sua exposição, não podem esperar para acessar o medicamento apenas quando a empresa generosamente decidir baixar seu preço.

Por isso, na última quarta (18/9), ativistas da Índia decidiram solicitar às autoridades que não aceitem as patentes do lenacapavir. Os pedidos de proteção patentária feitos pela Gilead, eles dizem, não correspondem às exigências de inovação da restrita legislação do país. “O Escritório de Patentes da Índia deverá priorizar a saúde pública, e não os lucros das farmacêuticas, ao analisar esses pedidos”, defendeu o especialista da Third World Network, KM Gopakumar, em recente coletiva de imprensa sobre a ação.

A não-concessão das patentes do lenacapavir na Índia, que traz consigo a possibilidade de que a potente indústria de genéricos daquela nação asiática produza versões muito mais baratas do fármaco, poderá significar uma revolução na prevenção e tratamento da aids, possivelmente viabilizando grandes avanços na luta para erradicá-la como problema global de saúde pública. O programa da ONU para a questão, a UNAIDS, acredita que a droga “oferece esperança de acabar com a aids, caso todos tenham acesso”.

Outra Saúde conversou com representantes de organizações que lutam pelo acesso a medicamentos no Brasil para conhecer as perspectivas de sua utilização em nosso país – e a possibilidade de que sua compra se torne, como em muitos outros casos, um dreno de recursos do SUS para os bolsos de um monopólio estrangeiro.

Sem patente, preço do remédio pode ser 440 vezes menor
O terreno do embate na Índia é bastante único. Para uma série especial de reportagens de Outra Saúde no ano passado, KM Gopakumar já explicou o quão exigente é o Indian Patent Act para conceder privilégios às empresas – à diferença de leis patentárias consideradas muito permissivas, como a brasileira. Ao impulsionar um parque farmacêutico nacional com grande especialização nos genéricos, essa lei que remete aos anos 1970 transformou a Índia na “farmácia do Terceiro Mundo” e facilitou enormemente o acesso barato dos povos do Sul Global a muitos medicamentos.

Já foram feitas as contas de como essa alternativa poderia ser decisiva no caso do lenacapavir. Neste mês, um grupo de acadêmicos estimou em estudo no Journal of Antimicrobial Therapy que a produção de versões genéricas da droga por várias indústrias na Índia poderia derrubar o valor de 44 mil dólares anuais por pessoa para apenas 100 dólares nas mesmas condições. Se a escala de produção fosse ainda maior, o preço poderia baixar ainda mais, para 40 dólares anuais por pessoa.

É possível imaginar o alívio que essa diferença traria para os reduzidos e disputados orçamentos da Saúde da grande maioria dos países em desenvolvimento, onde se concentram os casos de aids. Com um preço mais baixo, mais remédios podem ser comprados com os mesmos recursos e mais vidas podem ser salvas – além de que, pelo menos em termos proporcionais, menos dinheiro do Sul Global se transfere indevidamente para o caixa de uma corporação sediada em uma grande potência.

De acordo com o Sankalp Rehabilitation Trust, organização indiana responsável pela objeção ao pedido da Gilead, há elementos para sustentar que a patente do novo medicamento realmente não deve ser concedida. A Gilead pede a proteção patentária de dois sais químicos do lenacapavir. De fato, o Indian Patent Act não prevê a concessão de patentes às novas formas de um mesmo produto. No ano passado, em um caso bastante similar, as autoridades da Índia não reconheceram os direitos da Johnson & Johnson sobre um sal da bedaquilina, medicamento para tuberculose acorrentado pelas patentes até 2027 no Brasil.

De acordo com a farmacêutica Carolinne Scopel, do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), “as patentes secundárias, como a dos sais e das pró-drogas, têm essa tendência de serem mais frágeis e muitas vezes não cumprirem os requisitos de patenteabilidade”. Mesmo assim, ela explicou a este boletim, as empresas não param de tentar registrá-las: é a prática do evergreening, em que uma fabricante busca aumentar seus lucros estendendo de forma irregular e antiética seus direitos patentários sobre um produto.

Na coletiva, o Sankalp Rehabilitation Trust também fez uma avaliação do impacto global que teria a concessão dessas patentes consideradas imerecidas. “Sem um fornecimento estável de lenacapavir barato fabricado na Índia para o mundo, erradicar a Aids seguirá um objetivo inalcançável. A decisão a ser tomada pelo Escritório de Patentes da Índia será questão de vida ou morte para pessoas que convivem com o HIV em todo o mundo”, disse o diretor da entidade, Eldred Tellis.

O cenário brasileiro
Em outros países, a exemplo de Argentina, Indonésia, Tailândia e Vietnã, grupos de pacientes e organizações de ativistas também preparam ações judiciais contra o que consideram um monopólio injusto da Gilead sobre o lenacapavir. Como se vê no gráfico abaixo, pelo menos três pedidos de patentes ligados ao medicamento também já foram concedidos no Brasil. Apesar disso, esclarece Carolinne Scopel, a empresa ainda não pediu para registrá-lo na Anvisa, medida sem a qual ele não pode ser utilizado no país ou incorporado ao SUS.

À diferença dos demais países, o caminho para questionar a patente da Gilead em nosso país está mais estreito. “Aqui no Brasil, a única ação possível agora seria pedir a nulidade judicial. Isso ou pedir uma licença compulsória. Não tem mais espaço para ações como oposições ou nulidade administrativa. Aliás, uma dessas patentes foi concedida em tempo super rápido via Patent Prosecution Highway”, explica a advogada Susana van der Ploeg, coordenadora do GTPI.

O Patent Prosecution Highway é um mecanismo internacional que serve para acelerar a aprovação de patentes nos países. No Brasil, isso significa que “após um instituto de patentes parceiro considerar a matéria de um pedido de patente patenteável, torna-se possível priorizar o pedido de patente do mesmo invento e titular no INPI”, diz o órgão. Críticos indicam que a iniciativa abre brecha para que se aprovem patentes imerecidas – como, possivelmente, as do lenacapavir.

Não é a primeira vez que a Gilead escolhe caminhos questionáveis para registrar patentes no Brasil. Outra Saúde noticiou as batalhas em torno do sofosbuvir, remédio dessa farmacêutica que pode curar a hepatite em 12 semanas, pelo qual o Brasil pagou quantias exorbitantes por anos. À época, se apontaram muitos problemas nas solicitações de patente da empresa. De suas 126 reivindicações, apenas 2 foram concedidas – e não são ligadas a inovações no próprio fármaco, mas a uma substância intermediária em sua síntese. Como revelou um relatório da OMS, mesmo depois que o Brasil conseguiu produzir o sofosbuvir genérico em Farmanguinhos, seu preço continua bem acima do que se paga por ele no Fundo Estratégico da Opas ou na China.

Em seu uso para tratamento, explica Carolinne Scopel, o lenacapavir “é uma terapia de terceira linha, ou seja, ele é voltado para pessoas com HIV multirresistente, em que outros remédios já não fazem efeito. É por isso que ele tem sido considerado tão promissor, além do resultado preliminar de 100% de prevenção nos testes clínicos”. Não é difícil compreender porque movimentos de pacientes e defensores do acesso a medicamentos defendem que sua distribuição não pode estar restrita por interesses econômicos de um grupo monopolista.

Um documento de monitoramento do Ministério da Saúde já mapeou os estudos que demonstram a eficácia do lenacapavir, apesar de o próprio material “destacar que não é um guia de prática clínica e não representa posicionamento [da pasta] quanto à utilização das tecnologias em saúde abordada”.

Representantes da Gilead dizem que a empresa se compromete com o licenciamento voluntário (tipo de acordo para que um remédio possa ser produzido por outros fabricantes sem pagar royalties à dona da patente, ou em condições especiais) do lenacapavir em países de renda baixa. Contudo, o Brasil é um país em que 1 milhão de pessoas convivem com o HIV, mas que não se enquadra nessa categoria. O cenário impõe às autoridades nacionais de tomar alguma ação para que, no futuro, sua possível aprovação pela Anvisa e incorporação ao SUS seja uma boa notícia para todos os que buscam se prevenir ou se tratar do HIV sem estrangular o orçamento da Saúde comprando o fármaco pelos preços que a Gilead deseja impor.

“Nós temos mecanismos legais para garantir o acesso e salvaguardar as vidas das pessoas, incluindo o licenciamento compulsório, que devem ser usados para impedir abusos do sistema patentário e defender a vida das pessoas frente ao lucro”, defende Susana van der Ploeg. Neste ano, o presidente colombiano Gustavo Petro decretou a licença compulsória – “quebrou a patente”, na expressão bastante conhecida dos brasileiros – do dolutegravir, outro importante remédio para o HIV, cujo alto preço imposto pela farmacêutica ViiV não é compatível com sua importância para a saúde pública.

Se necessário, terão as autoridades brasileiras a coragem e ousadia de recorrer à “quebra da patente” do lenacapavir, como foi feito em 2007 com o efavirenz, para enfrentar com firmeza a epidemia da aids? Como destacou o especialista indiano KM Gopakumar em entrevista no ano passado a este boletim sobre a importância da soberania sanitária para os países do Sul Global, o Brasil possui os meios — Fiocruz, Butantan, outros laboratórios públicos e também a indústria de capital privado nacional — para fabricar medicamentos genéricos de ótima qualidade e furar o cerco das farmacêuticas.

“De 2010 para cá, as novas infecções por HIV cresceram 10% na América Latina e os números são ainda maiores no Brasil. Se nós queremos mesmo enfrentar a questão da aids, então precisamos pensar a sério no que fazer com o lenacapavir”, defendeu a farmacêutica Carolinne Scopel.

Fonte: Outras Palavras

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