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PARECER Nº 29/2025/CÂMARAS TÉCNICAS DE ENFERMAGEM


05.08.2025

PROCESSO Nº 00246.001051/2025-32 

  Atuação dos profissionais de Enfermagem no atendimento a pessoas que mantêm vínculo afetivo com bonecas do tipo “Reborn”.

 

I. RELATÓRIO

Trata-se de questões encaminhadas através do OFÍCIO Nº 495/2025/COREN-RO quanto a atuação da Enfermagem no atendimento a pessoas adultas que mantêm vínculo afetivo com bonecas do tipo “Reborn”, denominando-se ou não “pais/mães” dessas representações: limitação técnica e ética da atuação do profissional de enfermagem nesse contexto; possibilidade de acolhimento humanizado, sem comprometer a veracidade dos registros e atos profissionais; preservação da saúde mental da usuária, que pode estar em situação de vulnerabilidade ou sofrimento psíquica; a necessidade de encaminhamentos interdisciplinares ou avaliação psicológica/psiquiátrica e a responsabilidade legal e ética do profissional em casos de atendimento a objetos inanimados tratados como pacientes.

II. FUNDAMENTAÇÃO

As bonecas Reborn tiveram origem histórica durante a Segunda Guerra Mundial, quando era difícil encontrar brinquedos. Na época, mães e artesãs passaram a modificar bonecas antigas para deixá-las mais realistas. Essas bonecas surgiram na Alemanha como uma forma de restaurar brinquedos antigos, proporcionando conforto simbólico às crianças em tempos difíceis. A partir dos anos 1990, nos Estados Unidos, consolidaram-se como peças hiper-realistas, ganhando o nome de Reborn — termo que remete ao “renascimento” simbólico — e se tornaram itens de colecionadores por meio da técnica denominada reborning (SILVA, MOLIN E SILVA, 2025).

No  Brasil  essas  bonecas  ganharam  notoriedade  a  partir  dos  anos  2000  como  itens  de colecionadores  e  até  como  ferramenta  terapêutica  para o tratamento não farmacológico de Alzheimer (LOPEZ, 2024; LIMA et al., 2023). Estudos científicos vêm demonstrando que a utilização de bonecas antropomórficas em contextos assistenciais pode, em determinadas condições clínicas, gerar efeitos positivos. No cuidado de pacientes com demência, por exemplo, a terapia com bonecas é considerada uma estratégia não farmacológica com potencial para reduzir sintomas como agitação, ansiedade e agressividade, promovendo conforto emocional e engajamento social (COREN SP, 2025). Recentemente, a tendência das bonecas Reborn ganhou expressiva projeção nas redes sociais, impulsionada por pessoas que compartilham vivências com seus “bebês” inanimados. Essa visibilidade tem suscitado debates relevantes acerca dos limites entre o simbólico e o real, os contornos entre ficção e experiência subjetiva, bem como questões sobre o cuidado de enfermagem neste contexto.

 A Enfermagem brasileira é regida pela Lei nº 7.498/1986, regulamentada pelo Decreto nº 94.406/1987, e pelo Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem (Resolução Cofen nº 564/2017). A prática deve ser norteada por meio do Processo de Enfermagem (PE), conforme diretrizes da Resolução Cofen nº 736/2024 (BRASIL, 1986; BRASIL, 1987; COFEN, 2017; COFEN, 2024). O Processo de Enfermagem organiza-se em cinco etapas interdependentes — avaliação, diagnóstico, planejamento, implementação e evolução — as quais devem estar embasadas em teorias e modelos de cuidado, linguagens padronizadas, protocolos assistenciais e evidências científicas. Assim, a atuação do enfermeiro deve se pautar no julgamento clínico, voltado às necessidades reais da pessoa atendida (SANTOS et al., 2018; COREN SP, 2025). A atuação profissional deve considerar, ainda, os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme disposto na Lei nº 8.080/1990, especialmente o Art. 5º, que estabelece como objetivo do SUS a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas, por meio da promoção, proteção e recuperação da saúde (BRASIL, 1990).

No contexto de indivíduos adultos que mantêm vínculos afetivos com bonecas do tipo Reborn, o cuidado profissional deve permanecer centrado na pessoa. Embora esses objetos possam representar elementos simbólicos de grande valor subjetivo, não são destinatários do cuidado em Enfermagem. O foco da avaliação deve recair sobre as dimensões física, emocional, cognitiva e psicossocial da pessoa, considerando, inclusive, se o comportamento observado compromete sua funcionalidade ou expressa sofrimento psíquico significativo.  

Definir de forma objetiva os significados atribuídos a objetos inanimados constitui um desafio, sobretudo quando se trata de vínculos afetivos estabelecidos com bonecas do tipo Reborn. Esses laços revelam construções simbólicas complexas, que transcendem a materialidade do objeto na tentativa de responder às demandas emocionais profundas e, por vezes, inconscientes. Segundo Silva, Molin e Silva (2025), para a psicanálise freudiana, o investimento libidinal pode recair não apenas sobre pessoas reais, mas também sobre objetos simbólicos que ofereçam segurança e sentido psíquico. Diante de perdas, traumas ou vínculos interrompidos, é comum que o sujeito direcione essa energia a objetos inanimados — como as bonecas Reborn — que funcionam como suportes emocionais não ameaçadores. Esse vínculo pode expressar uma tentativa inconsciente de reparação psíquica, na qual o indivíduo busca restaurar afetos rompidos ou experiências frustradas. O cuidado com um objeto relacional exerce função reparadora, ao simbolizar a reconstrução de algo quebrado no mundo interno. Assim, o bebê Reborn pode ser compreendido como mediador simbólico de reorganização emocional diante do sofrimento.

Sob a perspectiva psicossocial, o vínculo com bonecas Reborn pode gerar sofrimento decorrente do julgamento social e da exclusão por expressar afetos fora dos padrões culturais. Com frequência, tais vínculos são associados de forma reducionista a transtornos mentais, ignorando seu potencial como construção simbólica resiliente. Clinicamente, é fundamental deslocar o olhar patologizante para uma abordagem ética e compreensiva. Ainda que transtornos não possam ser descartados, o investimento emocional nesse objeto deve ser entendido como expressão simbólica de dor, reparação e desejo de vínculo — e não, por si só, como sintoma. Em nível coletivo, a ausência de problematização crítica pode naturalizar defesas psíquicas regressivas, fomentando uma cultura de intolerância à frustração e de estetização do sofrimento (SILVA, MOLIN e SILVA, 2025).

Neste contexto, a escuta ativa, conforme apontam Macedo, Ávila, Barros, Barbosa et al. (2024), é ferramenta essencial no cuidado em saúde, permitindo ao profissional captar nuances emocionais, comportamentais e contextuais que impactam a condição da pessoa atendida. A escuta empática promove adesão ao tratamento, qualifica a assistência e contribui para o alívio do sofrimento psíquico de forma ética, compassiva e responsável.

No plano normativo, considerando os impactos a nível coletivo e de saúde pública, três projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados buscam conter o que parlamentares classificam como “abusos”: proibição de atendimento médico a bonecos em unidades de saúde públicas e privadas, com sanções a profissionais que realizarem tais procedimentos; aplicação de multas para quem tentar utilizar reborns para obter benefícios como prioridade em filas ou descontos — valores que variam entre R$ 7,5 mil e R$ 30,3 mil e a ampliação de políticas de saúde mental, integrando esse atendimento à Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), com escuta especializada e apoio às famílias (CFF, 2025).

III. CONCLUSÃO

O cuidado de Enfermagem, alicerçado em princípios técnicos, éticos e legais, deverá ser direcionado exclusivamente à pessoa usuária, considerando sua integralidade e complexidade biopsicossocial. Apesar da boneca representar, simbolicamente, um canal de expressão emocional ou um elemento de escuta durante o atendimento, ela não configura, sob nenhuma perspectiva, um sujeito de cuidado. Portanto, não deve ser objeto de registros clínicos, prescrições ou intervenções terapêuticas por parte da equipe de Enfermagem.

Nesse sentido, recomenda-se que, ao identificar vínculos intensos com objetos inanimados que impactem a percepção de realidade ou o funcionamento psíquico da pessoa atendida, o profissional de Enfermagem promova o encaminhamento e/ou matriciamento à equipe de saúde especializada em saúde mental, para avaliação e acompanhamento adequados.

Reforça-se que a responsabilidade legal e ética do profissional de Enfermagem reside na prestação de cuidados centrados na pessoa usuária. A realização de qualquer conduta assistencial que envolva objetos inanimados, ainda que simbolicamente investidos de sentido afetivo, extrapola os limites da prática profissional.

Josias Neves Ribeiro – Coren-RR nº 142.834-ENF

Ethelanny Panteleão Leite Almeida – Coren-MG nº 170.337-ENF

 

REFERENCIAS:

BRASIL. Decreto nº 94.406, de 8 de junho de 1987. Regulamenta a Lei nº 7.498/1986, que dispõe sobre o exercício da Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 9 jun. 1987.

BRASIL. Lei nº 7.498, de 25 de junho de 1986. Dispõe sobre a regulamentação do exercício da Enfermagem. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 26 jun. 1986.

Conselho Federal de Farmácia – CFF. (2025). SUS tem registrado relatos de pessoas que buscam atendimento para “bebês reborn”. cff.org.br 

CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM (COFEN). Resolução nº 564, de 6 de novembro de 2017. Aprova o Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem. Brasília, DF: Cofen, 2017.

CONSELHO FEDERAL DE ENFERMAGEM (COFEN). Resolução nº 736, de 14 de fevereiro de 2024. Dispõe sobre a implementação do Processo de Enfermagem em todo contexto socioambiental onde ocorre o cuidado de Enfermagem. Brasília, DF: Cofen, 2024.

Espín López, VI (2024). Terapia com boneca em pessoas com demência. Anatomia Digital , 7 (2), 131-146. https://doi.org/10.33262/anatomiadigital.v7i2.3015

LIMA, Erica Pereira De et al.. O impacto da terapia “bebê reborn” no resgate de memórias de idosos com alzheimer. Anais do X CIEH… Campina Grande: Realize Editora, 2023. Disponível em: <https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/101920>. Acesso em: 07/06/2025 23:24

Macedo, LX, Ávila, YF, Barros, LLP, Barbosa, APB, Bezerra, ALP, Baratto, MM,… Estigarribia, B. (2024). A escuta ativa na psiquiatria: O papel da empatia no cuidado e tratamento de pacientes com transtornos mentais. Jornal de Pesquisa Médica e Biociências , 1 (5), 357–366. https://doi.org/10.70164/jmbr.v1i5.403

SANTOS, M. G.; BITENCOURT, J. V. O. V.; SILVA, T. G.; FRIZON, G.; QUINTO, A. S. Etapas do processo de enfermagem: Uma revisão narrativa. Enfermagem em Foco, v. 8, n.4, 2018.

SILVA, D. da; MOLIN, E. D.; SILVA, R. K. I. da. Fantasias de maternidade e objetos substitutivos: o enigma clínico dos bebês reborn e as contribuições da psicologia. REASE, 11, 7894-7902, 2025. 

 

Documento assinado eletronicamente por:

JOSIAS NEVES RIBEIRO – Coren-RR 142.834-ENF, Coordenador-Geral, em 24/06/2025, às 12:27, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015; e

ETHELANNY PANTELEÃO LEITE ALMEIDA, Membro da Câmara Técnica de Enfermagem em Atenção à Saúde do Adolescente, Adulto e Idoso, em 24/06/2025, às 15:33, conforme horário oficial de Brasília, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

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